KIERKEGAARD E O DESCONSTRUTIVISMO DO CRISTIANISMO PROTESTANTE
“o coração tem razões
que a própria razão desconhece”
Pascal
É
incontestável a existência, de um lado, de um cristianismo de cabeça e, de
outro, de um cristianismo de coração. Explicando os termos.
O
cristianismo de cabeça é o cristianismo ensinado na academia, dogmático,
estruturado dentro de conceitos teológicos sistemáticos. Neste cristianismo as
principais doutrinas são apreendidas como fundamentos da fé, irrevogáveis e
imutáveis: é a ortodoxia fundamentalista. São exemplos deste tipo de
cristianismo as confissões de fé, os manuais de doutrinas, os pontos de crenças
doutrinais[1], as bulas, os códigos
canônicos, e muitos outros.
Uma
crítica consistente em face do cristianismo de cabeça reside na ênfase que este
confere à razão em detrimento da experiência cristã.
Na
outra ponta da linha, temos o cristianismo de coração. Conforme se depreende do
próprio nome, trata-se de um cristianismo oposto àquele que privilegia a razão.
É o cristianismo das experiências sobrenaturais, com menos, ou nenhum alicerce
teológico. Neste tipo de cristianismo impera o sentimentalismo e as percepções
individuais obtidas a partir do relacionamento sobrenatural com Deus. São
exemplos deste espectro cristão, diversas igrejas pentecostais e
neopentecostais.
Uma
crítica consistente em face do cristianismo de coração é de que este, ao
enfatizar as experiências, despreza fundamentos das Escrituras, culminando em inevitáveis e sérias distorções teológicas.
Este
pequeno introito, com a apresentação destas duas vertentes dentro do
cristianismo, tem como condão precípuo instigar-nos a refletir um pouco
sobre o pensamento de um grande filósofo dinamarquês do século XIX, Soren
Kierkegaard, e sua percepção com relação ao cristianismo.
Kierkegaard
nasceu em uma família protestante de classe média alta e muito cedo se dedicou
ao labor filosófico. Aos 28 anos de idade apresentou sua tese de mestrado à
Universidade de Copenhague, sob o título de “O
conceito de ironia”.
Nesta
obra, Kierkegaard desenvolveu a linha mestra que seria usada em todas as suas
obras posteriores, a saber, a filosofia socrática.
Sócrates é tido como um revolucionário para o pensamento humano, um
divisor entre a filosofia até então exclusivamente metafísica e a filosofia exclusivamente
fundamentada na razão. Enquanto nos primórdios do pensamento o homem se voltava para os agentes externos de compreensão do mundo (influência da natureza para
explicar a realidade, os mitos, as influências da sociedade nas tradições e nos
costumes, etc.), Sócrates quebra este paradigma e propõe uma nova maneira de
entender a realidade e de se relacionar com seus semelhantes: a compreensão do
mundo a partir de um pensamento subjetivo, individual e introspectivo. Deste
modo, agora já não são as tradições e os mitos que governam a vida do homem e
sim a razão que brota do seu interior. É a razão que, perspicazmente,
enaltecerá a individualidade do sujeito, caracterizando-o como um ser pensante
dentro de um mundo hostil e de uma realidade aterrorizante. É esta liberdade
que dá sentido à vida.
É com
base nestes princípios socráticos que Kierkegaard vai, paulatinamente,
construindo sua filosofia e seu entendimento da vida cristã.
Em
meados do século XIX Kierkegaard se deparou com um recrudescimento da formalidade
da fé cristã no seio da igreja reformada luterana. Na visão do filósofo
dinamarquês o cristianismo da sua época estava mergulhado num esfriamento
espiritual sem precedentes, distante do verdadeiro cristianismo ensinado nas
Escrituras.
Kierkegaard
observou que o cristianismo protestante não havia de fato se reformado, mas se
transformado em uma religião formal, aguada, dogmática e palatável de acordo
com a vontade do freguês. Foi contra este cristianismo tradicional que o
filósofo nórdico se insurgiu.
Para
Kierkegaard existe uma verdade que não é aquela pregada nos púlpitos. A verdade
do cristianismo está oculta, aprisionada dentro do indivíduo e precisa ser
libertada. Não é possível incutir o cristianismo no sujeito, e sim ajudá-lo a
encontrar esta realidade dentro de si mesmo.
Neste
sentido, Kierkegaard aponta para uma nova realidade cristã. O cristianismo é
totalmente diferente a despeito do que se ensina nas catedrais. O cristianismo
não é uma religião fácil, palatável, do contrário, é algo difícil e amargo. Ou
seja, não é tão simples querer compartimentar, enquadrar, formatar os ensinos
do Homem de Nazaré. Ao aceitar estes ensinos o homem é conduzido pelos
caminhos mais tortuosos e espinhosos da vida.
Entrementes,
o filósofo nórdico demonstra que a primeira dificuldade conceitual apresentada
pelo cristianismo é o seu paradoxo. O exemplo de paradoxo apresentado por Kierkegaard é o da encarnação do Deus vivo. Como um Deus infinito, se torna finito? Como um
Deus eterno, se torna temporal? Como explicar tais conceitos a não ser aceita-los
como paradoxos absolutos do cristianismo? Aqui não existe a mediação proposta
pela filosofia dialética hegeliana, mas, sim, a contradição irredutível. Alguns
pontos do cristianismo não podem ser explicados, mas aceitos pela fé.,
Este
exercício, à primeira vista aporético, se torna essencial para se desconstruir a falsa compreensão do cristianismo e fazer nascer sua versão
verdadeira. O cristianismo tem a ver com a interioridade do indivíduo e não com
argumentos discursivos. O cristianismo só faz sentido quando se relaciona com a
existência do homem e não meramente com seus pressupostos filosóficos. Destarte o cristianismo não pode ser considerado como uma doutrina que será
implantada na mente do crente, mas uma comunicação existencial. Uma comunicação
baseada na experiência vivida e não numa aceitação teórica.
Voltando
aos conceitos esposados no nosso introito e cotejando-os com o pensamento do
filósofo dinamarquês, podemos concluir que o cristianismo verdadeiro se revela
no equilíbrio entre a razão e o coração, entre a mente e a experiência. O homem
precisa ter a sua razão despertada para entender que o cristianismo está além
da própria razão. Que a sua existência está intimamente ligada à Deus, num
relacionamento de amor e mente, de coração e razão, na mais absoluta totalidade. Somente a experiência com
Deus poderá revelar a própria razão da nossa fé, ou a própria razão do coração.
A
intenção de Kierkegaard não era definir o cristianismo ou enumerar uma lista de
doutrinas, mas de despertar no homem o desejo de buscar a verdade, uma verdade que não está nos
manuais da religião, mas, no Deus revelado nas Escrituras, no Deus encarnado na pessoa
de Jesus Cristo. Uma busca que muitas vezes é difícil e dolorosa.
Marco Antonio Correia, advogado em São Paulo, na primavera de 2017.
[1] No protestantismo existem duas
importantes correntes teológicas que fundamentam suas principais crenças em
pontos, a saber o calvinismo e o arminianismo. O primeiro estabeleceu os 5
pontos do calvinismo em resposta aos 5 pontos do arminianismo. Tais listas
foram desenvolvidas pelos seguidores dos teólogos João Calvino e Jacó Armínio.
Comentários
Postar um comentário