SPURGEON, A SOBERANIA DE DEUS E A RESPONSABILIDADE HUMANA


(Para uma melhor compreensão deste artigo é recomendada a leitura do sermão de Charles Spurgeon, no link indicado na nota de rodapé)





O sermão “A soberana Graça de Deus e a Responsabilidade Humana” foi escrito pelo príncipe dos pregadores ingleses, Charles Spurgeon, no qual são abordadas a questão da soberania de Deus e a responsabilidade humana[1] aplicadas à salvação. O entendimento do pregador a respeito destes temas é essencialmente bíblico o que denota sua sensibilidade espiritual em estrita conexão com a exegese bíblica. No entanto, como um bom calvinista que foi, não poderia deixar de invocar a falácia do espantalho contra o arminianismo. Realmente, Spurgeon não podia perder esta oportunidade, não podia deixar “barato”, e foi verborrágico ao afirmar que o arminiano erra ao negar a doutrina da graça.
Antes de defender o espantalho arminiano, vou refletir um pouco sobre o sermão que é, no meu entendimento, um primor de exegese.
I. DIGRESSÃO HISTÓRICA SOBRE A SOBERANIA DE DEUS E O LIVRE-ARBÍTRIO[2]
Uma das grandes discussões teológicas que se perpetua há séculos é a responsabilidade humana em oposição a soberania de Deus. O debate em torno destas doutrinas teológicas ganhou contornos até então nunca delineados a partir dos estudos do filósofo e teólogo norte-africano Agostinho, bem como da sua pendenga travada com outro teólogo, o inglês Pelágio. O embate girou em torno da interpretação soteriológica, implicando, concomitantemente, os conceitos de graça, soberania e livre-arbítrio.
Nesta época, Agostinho revisou seu entendimento no tocante ao livre-arbítrio[3] e a fim de combater os ensinos heterodoxos do teólogo inglês, desenvolveu a doutrina da predestinação atrelada à soberania de Deus, entremeada pela graça salvífica. Com isso, à primeira vista, tem-se um afastamento da responsabilidade humana e do livre-arbítrio no processo da salvação.  Pelágio, por sua vez, insistia que a salvação somente seria possível com a participação direta e ativa do homem, dentre outras questões teológicas consectárias. Os ensinos de Pelágio foram considerados heréticos pela igreja, todavia, deixaram marcas indeléveis que se imiscuíram na prática do cristianismo, no decurso da história, principalmente quando falamos em salvação pelas obras.
Em decorrência deste embate, a concepção doutrinária da salvação se dividiu, não em razão dos ensinos de Pelágio (que foram rechaçados teologicamente por serem, de fato, heréticos), mas, principalmente, em decorrência do entendimento contrário de Agostinho em relação aos primeiros pais da igreja cristã. Apesar da questão não ter sido tratada com profundidade teológica no início da era cristã, os pais da igreja nunca haviam afastado o livre-arbítrio do homem e entendiam o conceito de responsabilidade humana como o corolário desta vontade livre.
A questão agostiniana atravessou os séculos sem muito percalços importantes e com pouca influência na teologia da idade média até a reforma[4]. Os reformadores, que tiveram sua teologia forjada no caldeirão dos ensinos de Agostinho, reanimaram, com intrepidez, a doutrina da predestinação, eleição, graça divina e, sobretudo, a justificação pela fé. Lutero e Calvino reformularam estas doutrinas à luz do pensamento agostiniano, as quais encabeçaram o corpus teológico da reforma e, posteriormente, foram sendo reinterpretadas pelos discípulos dos primeiros reformadores, na medida que os estudos avançavam. E são estes discípulos que vão diversificar as vertentes teológicas, desembocando em uma miríade de interpretações que, muitas vezes, diferiam e se afastavam dos ensinos dos próprios mestres.
A partir dos reformadores iniciais, um teólogo holandês se destacou e marcou profundamente a história da teologia com seus ensinos. Trata-se do pastor e professor da Universidade de Leiden, Jacó Armínio. A interpretação que Armínio deu às questões soteriológicas, outrora esposadas pelos primeiros reformadores, revolvia o tema do livre-arbítrio, sem preterir de alguns pontos basilares da reforma: a justificação pela fé e a graça de Deus. Mas, quanto isto, voltaremos mais à frente.
Após esta digressão, retornemos ao sermão do pregador Charles Spurgeon.
II. A EXEGESE DE SPURGEON
Spurgeon, no segundo parágrafo do seu sermão, diz: “A predestinação por Deus e a responsabilidade do homem são dois fatos percebidos por poucos e considerados inconsistentes e contraditórios”. Observe que o pregador demonstra os contornos que a doutrina da predestinação e a responsabilidade humana adquiriram ao longo dos séculos: uma é excludente da outra, tratam-se de ideias contraditórias, um verdadeiro antinomismo.
Pois bem, esta é a grande controversa teológica existente entre os calvinistas e arminianos. A predestinação, conforme o entendimento calvinista, pressupõe os decretos de Deus como corolários da sua soberania, por outro lado, segundo os arminianos, a responsabilidade humana pressupõe o livre-arbítrio. Sob esta ótica se depreende que os decretos divinos e o livre-arbítrio não coexistem harmoniosamente dentro do mesmo sistema.
Spurgeon quebra este paradigma ao analisar Romanos 10:20-21. Ao contrário do que propala muitos teólogos, nestes dois versículos coexistem as duas realidades doutrinárias sem serem contraditórias e excludentes. Aliás, conforme o próprio Spurgeon reconhece; por toda a Bíblia encontraremos versículos que ressaltam o controle total de Deus sobre sua criação e a responsabilidade dos homens pelas suas ações, e o que é mais impressionante, uma sem anular a outra.    
Spurgeon não chega a defender explicitamente a liberdade do homem, mas o faz, implicitamente, na segunda parte do seu sermão e assume o risco de ter sobre si a acusação de ser arminiano.
A soberania de Deus quando aplicada à salvação ressalta uma das maiores características do grande amor divino, a sua graça. Neste aspecto, Spurgeon é enfático ao dizer: “Se algum homem é salvo, assim o é pela Graça Divina e somente por ela. A razão da sua salvação não será encontrada nele, mas em Deus. Não somos salvos como resultado de algo que fazemos ou que desejamos – nossas ações e desejos são resultado da boa vontade de Deus e da obra da Sua graça em nossos corações. ”
Spurgeon confronta nossa incapacidade de compreender a Deus, nossa pequenez e ínfima percepção dos desígnios divinos. O que parece ser um antinomismo é na verdade nossa limitação cognitiva. O mesmo Deus que tem a exclusividade em operar a salvação no homem é o Deus que implora para que o homem se arrependa e se converta dos seus maus caminhos. O Deus que soberanamente decreta todas as coisas é o Deus que corteja o homem, para que este responda com fé ao seu anseio amoroso, mesmo sabendo que sua criatura poderá negar a resposta.
Tal aparente paradoxo é dissipado quando medito nas sábias palavras do pastor A.W.Tozer no seu livro “O Conhecimento do Santo”: “Deus soberanamente decretou que o homem fosse livre para exercer escolha moral, e o homem desde o começo tem cumprido esse decreto fazendo sua escolha entre o bem e o mal. Quando ele escolhe fazer o mal, ele não está agindo, por meio disso, contra a vontade soberana de Deus, mas a cumprindo, considerando que o decreto eterno decidiu, não qual escolha o homem deveria fazer, mas que ele devesse ser livre para fazê-la. Se em Sua absoluta liberdade Deus desejou dar ao homem uma liberdade limitada, quem poderá impedir Sua mão ou dizer, “Que fazes? ”    
A resistência humana à graça de Deus está no âmbito da liberdade de se fazer escolhas morais, e o pior, é o homem que assume as consequências da sua equivocada escolha. O homem escolhe o inferno! O homem caminha com as próprias pernas em sentido à condenação. Nunca o homem poderá acusar a Deus de ser injusto ou responsável pela sua perdição. O homem é o único responsável pelas suas escolhas morais e somente um Deus soberano poderia conceder tal liberdade ao homem. Segundo Mildred Bangs os homens são livres para escolher a quem servirão, mas não são livres para escolher as consequências.
No mesmo esteio de pensamento, Francis Schaeffer, ensina: “o homem, enquanto ser criado à imagem de Deus, é, portanto, um ser dotado de sentido inserido em uma história igualmente significativa, que pode optar por obedecer aos mandamentos de Deus e o amar ou então revoltar-se contra ele”.[5]
Uma outra ilustração que me fez refletir sobre este assunto, foi feita pelo professor de Teologia Bíblica da Universidade Mackenzie, José Ribeiro Neto. O professor compara a vida com um jogo de xadrez. De um lado do tabuleiro está Deus e do outro, o homem. Ocorre que Deus já conhece todos os lances possíveis que o homem pode escolher. Deus conhece todas as jogadas! Cada movimento do homem no tabuleiro ocorre de acordo com a sua liberdade de escolha, porém, será sempre limitado pelo conhecimento de Deus.
Desta feita, podemos concluir que o Deus de amor e soberano criou seres livres e moralmente responsáveis, porém, esta liberdade está circunscrita às regras previamente estabelecidas. O homem é genuinamente livre dentro dos limites estabelecidos por Deus. A liberdade do homem não pode extrapolar os limites da vontade de Deus. Tal pensamento pode ser ilustrado através de dois círculos, um contido no outro, sendo o maior a vontade de Deus e o menor (contido) a liberdade do homem:
Spurgeon nos ensina que a soberania de Deus não é inconciliável com a responsabilidade humana. A verdade de Deus não está em uma ou na outra, mas, sim, nas duas. E arremata o pregador inglês: “Quando se trata de pregar a salvação, creio que quanto mais profundo o homem possa ir, melhor. A razão pela qual alguém é salvo é Graça, Graça, Graça! E neste ponto, quanto mais minúcias, melhor. Mas quando a questão é porque o homem está condenado, então o Arminianismo está muito mais certo que o Antinomianismo.”
Por derradeiro, o pregador inglês testemunha à respeito do poder da Palavra de Deus que está acima de quaisquer sistemas teológico. É à luz da Palavra que devemos nos submeter com humildade a despeito de qualquer pensamento e julgamento humano: “Então, quanto a mim – alguns de vocês podem ir embora e afirmar que fui antinomiano na primeira parte do sermão e Arminiano no final. Não me importo! Imploro que pesquisem a Bíblia por si mesmos, quanto à Lei e ao Testemunho. Se não falo de acordo com Sua Palavra, é porque não há luz em mim”.

III. A DEFESA ARMINIANA DA DOUTRINA DA GRAÇA
Pois bem, após refletirmos sobre este grandioso sermão, voltemos ao único ponto falacioso que, infelizmente, o príncipe dos pregadores cometeu em seu sermão. Eis suas palavras: “Erramos quando o Calvinista começa a interferir na questão da condenação e interfere na justiça de Deus – ou quando o Arminiano nega a Doutrina da Graça ” (grifo nosso).
Conforme já dissemos alhures, tanto o arminianismo como o calvinismo tiveram várias reinterpretações no decurso da história a depender de seus discípulos. Por isto não sabemos de qual corrente teológica arminiana Spurgeon abstraiu que o arminiano nega a doutrina da graça. Todavia, podemos asseverar, com toda certeza, que não foi da corrente arminiana clássica[6] e é à luz do pensamento arminiano clássico que vou fundamentar a defesa.
O arminianismo clássico é fundado essencialmente na doutrina da graça e do amor de Deus, sendo o livre-arbítrio uma doutrina secundária dentro do sistema.
Da pena do próprio Jacó Armínio, temos:
“A respeito da graça e do livre-arbítrio, isto é o que ensino, a respeito das Escrituras e do consenso ortodoxo: o livre arbítrio é incapaz de iniciar ou aperfeiçoar qualquer bem verdadeiro e espiritual, sem a graça. Para que eu não possa ser considerado, como Pelágio, como usando de mentiras com respeito à palavra “graça”, quero dizer, com isto, aquilo que é a graça de Cristo e que diz respeito à regeneração. Portanto afirmo que esta graça é simples e absolutamente necessária para o esclarecimento da mente, a devida ordenação dos interesses e dos sentimentos, e a inclinação da vontade para o que é bom. É esta graça que opera na mente, nos sentimentos e na vontade; que infunde na mente bons pensamentos; inspira bons desejos às ações e faz com que a vontade. (...) Esta graça inicia a salvação, promovendo-a, aperfeiçoando-a e consumando-a”.[7]  
O preclaro teólogo holandês é incisivo ao atribuir à graça o papel preponderante, exclusivo e enaltecedor da ação divina no homem. O livre-arbítrio é um consectário, não existe independente da graça, antes, é um acessório que segue o principal.
Armínio, em outro momento de suas obras, assevera com tamanha propriedade sobre o tema:
“Desta maneira atribuo a graça o início, a continuidade e a consumação de todo o bem, de tal forma que, sem a sua influência, um homem, mesmo já estando regenerado, não pode conceber, nem fazer bem algum, nem resistir a qualquer tentação do mal, sem esta graça emocionante e preventiva, que coopera com o homem. Como fica claro a partir desta afirmação, de maneira nenhuma cometo alguma injustiça à graça, atribuindo, como é relatado de mim, uma quantidade excessiva de coisas ao livre-arbítrio do homem”.[8]   
É bem provável que Spurgeon, pelo menos ao tempo em que pregou este sermão, ainda não havia lido as obras de Armínio e, provavelmente, sua intuição se baseava em escritos de outros autores ou até mesmo numa concepção pelagiana. É assim que se inicia a construção do espantalho: na deturpação de conceitos em bases infundadas, bem como  numa interpretação eivadas de vícios que compromete o real significado do texto. Tais equívocos tornam-se impropérios que assumem a condição de doutrina verdadeira, resultando na desconstrução de todo um sistema. Ou seja, trata-se da mais ignominiosa falácia que, perpetrada ao longo da história, assume o condão de verdade absoluta.
Neste passo, é importante ressaltar que para Armínio sua principal preocupação não residia se a salvação dependia inteiramente e exclusivamente da graça de Deus (para ele isto era inconteste), mas, sim, se a graça poderia ser resistida ou não. Spurgeon, noutro momento argumenta (argumento comum no círculo calvinista) que se a graça é resistível, então a salvação não é inteiramente da graça. Aqui há outra controvérsia que, no meu entendimento, se resolve em uma única frase do teólogo americano Roger Olson, em sua clássica obra “Teologia Arminiana - Mitos e Realidades”: “Um presente que é rejeitado ainda é um presente, se for livremente recebido. Um presente recebido livremente não é um presente menor do que um recebido sob coerção.[9]      
Os paradoxos existentes na Palavra de Deus são para mostrar que a lógica humana não se coaduna com a lógica divina. Além de diferentes, existe um abismo de natureza ontológica. O pensamento humano ocidental, a partir dos filósofos gregos, perpassando por Descartes e Kant foi todo sistematizado, exclusivamente, nos limites da razão. Não há espaço para a ordem metafisica na construção deste pensamento. As proposições são um encadeamento de causa e efeito, tudo ordenado para se encaixar perfeitamente de acordo com a lógica racional. Portanto, entender um Deus soberano que tem o controle da história e permite que sua criatura possa ter liberdade de escolha é, ao mesmo tempo, um absurdo epistemológico e teológico. No entanto, não podemos esquecer que os pensamentos de Deus estão acima dos nossos pensamentos e desconstroem a nossa sabedoria, como está dito no livro do profeta: "Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos, os meus caminhos, diz o SENHOR, porque, assim como os céus são mais altos do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os meus pensamentos, mais altos do que os vossos pensamentos." [10]         

Marco Antonio Correia, outono de 2018.



[2] Trata-se de um tópico amplamente debatido e repisado nos círculos acadêmicos, portanto, caso esteja familiarizado com este tema, sugiro que vá ao próximo tópico, sem nenhum prejuízo para entendimento do artigo.
[3] Até este momento, em que combateu a doutrina pelagiana,  Agostinho defendeu o livre-arbítrio, à exemplo dos primeiros pais da igreja.
[4] Durante toda a idade média a teologia católica desenvolveu uma doutrina semipelagiana que, gradativamente, se aproximou da doutrina pelagiana. Na época da reforma protestante, a salvação pelas obras foi grandemente disseminada pela igreja católica, através das práticas de sacrifícios pessoais, venda de indulgências, etc.
[5] Schaeffer, Francis. O Deus que intervém, p. 134.
[6] Tal corrente é àquela que se manteve mais próxima e fiel aos escritos do teólogo Jacob Armínio.
[7] Armínio, Jacó. As Obras de Armínio, vol.02, p.406.
[8] Idem, vol.01, p. 232.
[9] Olson, Roger E. p. 210.
[10] Isaias 55:8-9

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