A JUSTIÇA DE DEUS: O TEMA CENTRAL NA CARTA AOS ROMANOS

“O justo viverá pela fé”

UM CONTEXTO TEOLÓGICO

A carta do Apóstolo Paulo à igreja em Roma, foi escrita com único propósito: ressaltar a justiça de Deus.

O significado desta justiça está intimamente vinculado ao plano eterno de Deus. Tal plano tem o condão de estabelecer um liame entre a criação, a queda e a redenção através de Jesus Cristo.

Podemos dizer, a partir de um ponto de vista teológico, que para entender a história dos homens e de todas as coisas (criadas) é necessário, antecipadamente, conhecer a história de Deus.

Desta forma, a história de Deus - teologicamente conhecida como meta-história (metanarrativa) -, traça todos os aspectos, circunstâncias e condições necessárias para uma compreensão da vida e, doravante, do próprio desenvolvimento da história dos homens. Ou seja, para compreender o sentido da nossa vida (ou da nossa história), é importante, a priori, saber exatamente qual o sentido, o significado e o alcance do plano maior contido na história de Deus[1]. Esta história, como bem sabemos, é contada por intermédio de um conjunto de livros, a saber, a Bíblia. Dentro da história de Deus se encontra o plano divino para toda a criação que, por sua vez, compreende quatro pontos[2]:
      
      1)  criação;
      2)  queda;
      3)  redenção;
      4)  consumação

Antes de nascer o mundo, na eternidade, a augusta Trindade, por amor, decidiu criar. Ali se estabeleceu um plano “fechado” que comportava, de uma só vez, o início, o fim e o recomeço de todas as coisas.

O objetivo maior deste plano não era outra coisa senão estabelecer um relacionamento de amor livre e verdadeiro entre o Criador e a criatura. A Bíblia afirma que Deus criou tudo para a sua glória (Sl. 19). A criação, aqui incluído o homem, é o receptáculo desta glória, o repositório do seu amor. C.S.Lewis, ao considerar esta glória sob a perspectiva relacional, ensina que ela consiste em ser amado por Deus, como a obra em que o artista se deleita, é a boa reputação que a criatura tem para com Ele [3]. Da mesma forma, o salmista ao se referir ao homem enquanto criação divina, declara que Deus o corou de glória e honra[4].

O pressuposto deste amor é o livre-arbítrio. Não existe relacionamento fundado num amor verdadeiro que prescinde da escolha livre dos agentes desta relação.

O Deus triúno, já sabia de antemão que a liberdade outorgada ao homem o levaria à queda, à quebra do relacionamento e, como remédio, ainda na eternidade, a redenção foi preparada através da encarnação e morte do próprio Deus numa cruz.

A queda do homem, além de afastá-lo de Deus, afetou sobremaneira todo o universo, desestruturando a ordem criada. Daí resulta a razão da restauração de todas as coisas; o terceiro ponto do plano maior[5].

Arrumar a criação é fazê-la exatamente voltar ao projeto inicial em que tudo era bom. O início da consecução deste plano aqui na Terra se deu através da aliança com Abraão. Por intermédio do patriarca e de sua descendência o pecado de Adão seria corrigido e todas as famílias de todas as nações seriam restauradas. As promessas de Deus não falham jamais[6].

Os judeus tinham plena consciência deste propósito eterno que há muito estava sendo pregado pelos profetas. Os judeus seriam libertados da opressão e, por consequência, as outras nações também seriam alcançadas e restauradas, culminando no fim da história. Esta consciência não só foi refletida nas cerimônias, liturgias e na Torá, como também, nas relações com os gentios. Os judeus, tidos como povo eleito de Deus, se posicionavam como uma comunidade superior, detentora dos segredos divinos. 

UM CONTEXTO HISTÓRICO

Assim, podemos dizer que esta tensão histórica entre judeus e gentios é um dos motivos que propulsionaram Paulo a escrever sua epistola aos romanos, de onde subjaz o aspecto teológico da justiça de Deus. A justa aliança para corrigir o mal na criação não mais seria operada diretamente através dos judeus, e sim através do Messias. 

Jesus havia morrido e ressuscitado. O Evangelho das boas novas se espalhava com poder e graça por toda a região, alcançando, invariavelmente, tanto os judeus como os gentios.

É provável que a igreja cristã em Roma tenha começado com os judeus que retornaram de Jerusalém após a festa do Pentecostes. No entanto, em 49 d.c. o imperador romano expulsou toda a comunidade judaica de Roma e a igreja permaneceu ali apenas com os gentios convertidos. Em 52 d.c. o imperador morre e os judeus retornam à Roma e começam ali um grande conflito com os gentios pelo controle da igreja e pela observância aos preceitos da Lei (Torá).

A tensão precisava ser resolvida. Paulo já havia passado por experiências semelhantes na Galácia em que judeus convertidos sobrepujavam os gentios para fazê-los observar os preceitos judaicos. Paulo combateu com veemência tal prática e percebeu o quanto este problema afetava a unidade do corpo de Cristo e, por conseguinte, esvaziava o sentido do Evangelho.

Paulo, em sua carta aos romanos, mais uma vez buscou desvincular a mensagem de Cristo dos ornamentos e cerimoniais judaicos. Aliás, este objetivo é um tema recorrente em outras cartas do Apóstolo, bem como, motivo de embate interno na igreja primitiva[7].

Apesar do cristianismo ter suas raízes fincadas no judaísmo, deste difere e o supera, conquanto manifesta a poder de Deus para renovação da ordem criada. E é aqui, neste ponto, que Paulo estabelece sua linha de raciocínio ao argumentar, de forma detalhada, os aspectos da velha aliança iniciada em Abraão e a eficácia da nova aliança inaugurada por Jesus[8].

Outro motivo para Paulo escrever a carta - além daquele de acabar com as dissenções entre judeus e gentios -, era a estratégia geográfica de Roma para evangelizar o ocidente, principalmente a Espanha[9] . O Evangelho somente chegaria com vigor naquela parte do mundo se houvesse o apoio de uma igreja sólida e unida em torno do mesmo ideal.

Estes dois motivos, quando observados no contexto histórico e igualmente relacionados com outras cartas do Apóstolo, se revelam incontestes como base para a formação do corpus narrativo histórico e teológico da carta aos romanos.

O povo judeu, de fato, era o povo escolhido para trazer ao mundo a libertação. A aliança de Deus com este povo “visava resolver os problemas no seio da criação”[10] .  Assim surge o tema teológico central da carta: a justiça de Deus como fidelidade à aliança.

A JUSTIÇA DE DEUS

Entender o significado de “justiça de Deus” é o primeiro passo para entender a mensagem do apóstolo, não somente nesta carta, mas em diversas outras epístolas. N. T. Wright ensina que o sentido da palavra “justiça” no Antigo Testamento - que é usado por Paulo -, remete à ideia de que Deus, por ser criador (autor do plano maior) “tem a obrigação de arrumar o mundo de uma vez por todas”, bem como demonstrar sua fidelidade às promessas feitas no âmbito da aliança.[11]  Esta é a estrutura teológica que permeia toda carta aos romanos: a justiça do Deus criador e da aliança.

A justiça de Deus, entrementes, é a fidelidade de Deus às promessas de bênçãos e restauração de todas as coisas.              

Paulo aduz que Deus se revelou e se fez conhecer por meio da criação[12] e vinculou a promessa de restauração a partir da descendência de Abraão, o povo judeu eleito por Deus.

No entanto, os judeus se mostraram incapazes de cumprir sua parte na aliança[13] por acreditar que a salvação e a justificação eram alcançadas pela observância aos ditames da lei. Paulo, por outro lado, em sua carta aos romanos, desmonta este pensamento eminentemente judeu, para apresentar-lhes uma nova realidade; a salvação não se pode alcançar com a ajuda da lei e a justificação não se opera através de obras humanas. A lei reflete a impotência humana diante de Deus e revela o pecado sem prescrever a cura. A aliança com Abraão seria cumprida, não por que os homens foram fiéis, mas porque Deus é fiel e sua fidelidade dura para sempre. Independentemente da Lei a justiça de Deus se manifestou e a aliança foi cumprida através da fé em Jesus, o Messias[14].

Assim, podemos tomar o conceito de justiça sob dois aspectos; sobrepostos e ao mesmo tempo interligados. O primeiro remete à ideia de promessa de restauração de todas as coisas. Deus prometeu à Abrão que através dele o mal ocasionado com a queda de Adão e Eva, seria desfeito, doutro lado, em sobreposição a esta ideia, Deus trataria o pecado de cada homem. A justificação do pecado dos homens, os colocariam em posição de aceitação perante o grande Juiz. Esta justificação, entretanto, não se alcança por meio das obras meritórias, mas, através da fé em um único homem: Jesus Cristo o Messias.

Esta mensagem pregada por Paulo, trouxe um incômodo aos seus ouvintes judeus, principalmente os convertidos ao cristianismo. Na tradição judaica, a justiça de Deus seria exercida no final da história. O juízo divino para condenar ou absolver os homens é exclusivamente escatológico. Para os Judeus, no fim dos tempos, Deus iria julgar segundo as obras de cada um. O homem seria considerado justo ao conter seus impulsos maus em favor do  s bons. É como numa conta corrente em que de um lado temos o crédito e de outro o débito a ser compensado. Assim seriam sopesadas as boas obras e as más obras, resultando em absolvição ou condenação, dependendo do saldo final[15].

Paulo, desconstrói este pensamento judaico de débito e crédito e causa polêmica. Deus não levaria em conta a justificação pelas obras, mas pela fé em seu filho Jesus[16], o verdadeiro cumpridor das promessas. É neste ponto que cabe obtemperar o discurso de Paulo aos judeus em Roma acerca da justificação pela fé e não pelas obras contido no capítulo 9. Paulo, ao fazer menção à Esaú e Jacó - que no meu entender, não existe nenhuma relação com a doutrina da eleição tão propalada pelos calvinistas -; indica Esaú como o tipo daqueles que buscam a justificação e a salvação pelas obras da lei; e Jacó, o tipo daqueles que as buscam pela fé. Como consequência desta busca, tem-se o significado das expressões “Amei a Jacó, e odiei a Esaú”[17]. Conforme bem ensinou o teólogo holandês Jacó Armínio: “Deus ama aqueles que buscam a justiça e a salvação pela fé em Cristo, mas odeia aqueles que buscam a mesma coisa pelas obras da lei”[18].

Paulo concorda com o entendimento escatológico da justificação, porém, o cumprimento futuro foi realizado no presente na pessoa de Jesus Cristo. Em Jesus converge a Justiça de Deus e a absolvição dos pecados aqui e agora[19]e não há mais condenação para àqueles que estão Nele[20], ou, como ensina N. T. Wright, “Jesus é o ponto de convergência da criação e da aliança”.[21]

Esta dimensão do pensamento paulino é absurdamente maravilhosa e inconcebível para mente judaica daquele tempo. “Em Cristo, o futuro tornou-se presente; o julgamento escatológico aconteceu, com efeito, na História”[22]. Com a obra redentora de Jesus, o homem tem a imagem de Deus restaurada, conforme a imagem do Messias, este é o primeiro passo rumo à concretização do ser humano celeste em detrimento do ser humano terreno e a fé é o meio pela qual tudo isto acontece.[23]   
        
 Marco Antonio Correia, outono de 2017. 

 
 




[1] Para maiores detalhes sobre a história da Bíblia e o Plano de Deus, recomendo a leitura do livro “Como ler a Bíblia livro por livro” de Gordon Fee e Douglas Stuart.
[2] Uma importante linha de interpretação dos textos bíblicos considera estes quatros pontos como pressupostos hermenêuticos. Deste modo, podemos dizer que, para a compreensão do sentido e significado de uma passagem bíblica, é necessário que a interpretação esteja baseada nestes pressupostos.
[3] Lewis, C.S. Peso de Glória, p. 42-44.
[4] Salmos 8:5.
[5] Romanos 8:22-24.
[6] Romanos 9:6.
[7] Para uma compreensão melhor sobe este assunto recomendo a leitura de Atos 15.
[8] Romanos 9:1-5. A introdução da carta já demonstra, de forma contundente, a preocupação de Paulo e os temas que serão abordados no decorrer da sua narrativa.
[9] Romanos 15:22-25.
[10] Wright, N. T. Paulo novas perspectivas. P.42.
[11] Wright, N.T. op.cit. p. 44
[12] Romanos 1:20-21.
[13] É importante frisar que no curso da história bíblica, esta aliança, feita como os judeus, vai se alternando em fracassos, sendo sempre renovada com outras personagens, como por exemplo, a aliança feita com Moisés e, posteriormente, renovada com Davi.    
[14] Romanos 3:21-22
[15] Ladd, George Eldon. Teologia do Novo Testamento, p. 605.
[16] Rm 5:1.
[17] Rm 9:13
[18] Armínio, Jacó. Uma Análise de Romanos 9. P.37.
[19] Rm 5:9.
[20] Rm 8.1.
[21] Wright, N.T., ibid., p. 46
[22] Ladd, George Eldon. Ibid., p. 607.
[23] Hb 10:38

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